24 de agosto de 2011

Como Educadora, percebo a dificuldade que muitos alunos tem em aceitar e declarar abertamente frente aos outros colegas a cor de sua pele.Vivenciei uma problemática desse tipo essa semana e busquei um estudo dentro dessa abordagem. Achei o texto abaixo e quis compartilhar pois é riquíssimo em informações e bem embasado.Vale apena ler...

Espelho meu: as crianças e a questão étnico-racial

Por Yvone Costa de Souza

Falar e escrever sobre racismo e preconceito implica na apropriação da história da África e do Brasil pelas instituições, professores(as) e educadores(as), entendendo-os como sujeitos histórico-sociais, capazes de intervir nos processos de ensino e de pesquisa que constituem a dinâmica social no cotidiano da escola, demarcando-se que o território africano é composto da diversidade étnica, cultural e política. As matrizes culturais características desse povo, originadas e existentes no continente africano, delimitam as variadas etnias e suas culturas, ressaltando, também, a importância de cultuar os ancestrais de um povo excluído das matrizes curriculares e escondido em propostas pedagógicas emblemáticas de uma cultura eurocêntrica.

Ao tratar da questão das diversidades racial e cultural nas creches e na Educação Infantil torna-se relevante considerar a formação docente, que deveria ser o primeiro critério para a seleção das professoras que trabalham na Educação Infantil. Os cursos de formação em nível médio, modalidade normal, e em pedagogia de nível superior não se constituem de uma matriz curricular, mas, como coloca Gomes e Silva (2002), deveriam propor “o desafio de construir e implementar propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade e assim construir uma proposta mais coletiva” que contemple a infância pequena.

A má qualidade da formação e a ausência de condições adequadas ao exercício do trabalho dos professores são históricas em nosso país, trazendo em evidência as amarras sociais e culturais encontradas no cotidiano da prática docente. Um professor ou uma professora, no seu curso de formação, estuda e é apresentado(a) a uma criança e, quando eles chegam para trabalhar nas unidades escolares públicas e comunitárias, encontram outra. Deparam-se com histórias, fatos, locais, situações, solicitações que a sua formação não dá conta. Sua formação profissional permanece periférica. No caso da Educação Infantil, as políticas de formação no Brasil, desde a década de 90, vêm sendo representadas por movimentos para a melhoria na qualidade, resultando numa definição de identidade dos serviços destinados às crianças de 0 a 6 anos.

Para compreender o conjunto de saberes dos professores da educação infantil, é preciso considerar as marcas produzidas historicamente em sua trajetória profissional, marcadas pela diversidade de funções do atendimento às crianças pequenas, que refletem e influenciam o cotidiano da educação infantil (AQUINO, 2008, p. 169).

A formação inicial nos cursos de magistério, modalidade Normal médio e superior, até os anos 90, não contemplava a criança de 0 a 3 anos, o que confirma a invisibilidade dessa faixa etária, mesmo no mundo contemporâneo. Como vimos, somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é que se estabeleceu a Educação Infantil como etapa inicial da Educação Básica.

Em relação aos cursos específicos sobre Educação Infantil, podemos concluir que na Formação de Magistério, assim como no Curso de Pedagogia, nas escolas normais e nas universidades, as crianças pequenas não foram apresentadas aos(às) educadores(as).

A compreensão de que trabalhar com Educação Infantil é uma tarefa que não exige formação está ligada a uma visão que não reconhece nesse “cuidado” a sua dimensão educativa, desafiadora, voltada para o desenvolvimento da criança. A presença de professores nas turmas de crianças maiores denuncia o quanto ainda a Educação Infantil  organiza seu trabalho como sendo uma fase preparatória para a escola regular. É como se só as crianças maiores precisassem de um trabalho pedagógico, que, na Educação Infantil, ainda é visto como se fosse unicamente a preparação ou “prontidão” para a escola.

Há necessidade de se estabelecer um currículo em que conversar com a criança que ainda não fala, dar banho, trocar fraldas, colocar no colo, organizar um ambiente que garanta o movimento para aquelas que ainda não andam e deixá-las o menor tempo possível no berço sejam atividades pedagógicas que envolvam interação, preparação, trabalho corporal, afeto, amizade e respeito pelas diferenças e as diversidades.

Percebemos ainda que, embora com formação, muitos têm uma experiência inicial de trabalho em escolas com turmas regulares. O fato de hoje trabalharem em creches não possibilitou muita discussão sobre a especificidade do trabalho com a Educação Infantil como um todo, do berçário às turmas de 6 anos. Há uma necessidade da formação continuada, voltada para a Educação Infantil e que seja entendida como necessária para a atuação em todas as turmas, mas em particular, com as crianças de 0 a 3 anos.

O negro e o preconceito racial são frequentes no espaço da escola e na história do Brasil. A diversidade racial revela a riqueza de um povo de luta, de resistência e as conquistas dos povos negros. Na formação docente e no cotidiano da escola, embora a Lei nº 10.639 garanta os estudos da África e da Cultura Afro-brasileira, estes apenas são apresentados às crianças em datas comemorativas oficiais, fugindo do caminho legal. O emblema eurocêntrico embranquecido é tão forte, que mesmo com a Lei, a escola em seus projetos pedagógicos e práticas cotidianas não a utiliza como ferramenta de desconstrução desse espaço segregatório.

Pensar na formação docente para infância com um currículo de valorização cultural que contemple as nossas origens africanas pautado na diáspora é um caminho de luta contra o racismo. Buscar estudos e ações que considerem o ensino e a pesquisa da história do povo africano, a marca de um povo arrancado, de maneira trágica, de seu continente, lugar de uma rica cultura construída por povos de 53 países, é imprescindível para a construção de um currículo pautado na valorização da diversidade racial.

A África é um dos maiores continentes do planeta, perdendo apenas para a Ásia e a América e, ganhando disparado, do continente europeu. Mas, a marca da dominação herdada e produzida durante esse trágico e cruel episódio, a escravidão, pode ser desconstruída através de propostas, vontade e comprometimento políticos do poder do Estado.

Um dos grandes desafios que se coloca, ligado diretamente à formação dos educadores infantis, é a superação de dificuldades de conviver com as questões raciais entre as crianças e entre eles mesmos, a fim de que se construa uma prática pedagógica voltada para o respeito mútuo, conscientizando-se de que é fundamental lidar com as diferenças, partindo do princípio de que elas são riquezas e precisam ser respeitadas, ou seja, revelar um pouco as emoções, as razões individuais e os preconceitos herdados da nossa história e da nossa cultura. Sem desconsiderar a nossa história de vida, que nos leva a enxergar melhor os impedimentos à mudança, precisamos abandonar os sentimentos e emoções que impossibilitam o enfrentamento dessas questões.

Dialogar com os professores de Educação Infantil sobre as questões raciais, de preconceito e discriminação, permanentemente fez, e ainda faz parte das minhas experiências pessoal e profissional, por acreditar que a troca, a partilha de conversas é um caminho possível para reconstruir ideias, valores e representações que se tem a respeito do negro, na certeza de que essas conversas favorecem as minhas próprias reflexões.

Relembrando as histórias da minha Infância, vejo que os adultos daquela época, assim como os de hoje, não percebiam que muitas brincadeiras tinham um caráter segregatório, faltando-lhes entendimento para reconhecer os indicativos de preconceito para combatê-los durante o processo educativo das crianças.

[...] precisamos sempre rememorar a história – a de cada um de nós e de todos – conhecer a história, estudar a história, desatando a linguagem acorrentada por tão diversas mordaças, ameaças, correntes, grilhões. Destaco, ainda, que os profissionais da educação precisam discutir o racismo e os seus próprios preconceitos, temas que, com frequência, não têm sido reconhecidos como legitimamente pedagógicos. Encontro racismo e preconceito nas coisas da escola? Sim, e muito; e como poderia ser de outro modo? [....] acredito que existe o melhor método, uma única melhor maneira de ensinar isto ou aquilo; que tem especial apego a escolas de desenvolvimento, a padrões de aprendizagem...; que padroniza, que tem nas grades (curriculares) a base de seu trabalho: que separa, que se grega, desagrega, valoriza a delação, a desunião, a premiação e o castigo (KRAMER, 1995, p. 69).

O uso generalizado do conceito de racismo pode esvaziar a importância das questões raciais, impedindo dessa forma o processo de entendimento da necessidade da persistência da discriminação sobre este tema, dentro de um novo enfoque.  

Os estudos que tratam das questões raciais no Brasil estão divididos, de acordo com Nogueira (1979), em três correntes: afro-brasileira, a dos estudos históricos e a sociológica, cada qual trazendo, de acordo com suas especificidades, suas concepções e definições de racismo e preconceito.

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem  (NOGUEIRA, 1979, p.78-79).

Dentre as diferenças dos preconceitos raciais de marca e de origem, gostaríamos de destacar a questão da carga afetiva, em que, segundo o autor, o preconceito de marca tende a ser mais intelectivo e estético, enquanto o de origem tende a ser mais emocional e integral.

Acreditamos que o racismo, o preconceito racial e os estereótipos negativos experimentados pela criança negra influenciam o seu desenvolvimento global e, em particular, a sua autoimagem e estima. Neste sentido, procuramos destacar como as questões raciais e os preconceitos são percebidos e interpretados no cotidiano das creches.

Segundo definição do “Dicionário de relações étnicas e raciais”, o termo preconceito vem do latim prae, antes, e conceptu, conceito, que pode ser explicado como um conjunto de crenças e valores aprendidos, mesmo não havendo nenhum contato ou experiência compartilhada anteriormente, podendo ser um fenômeno individual ou social. O preconceito social está ligado às classes sociais, às atitudes ou ideias formadas antecipadamente, sem fundamento razoável e de maneira desfavorável em relação aos vários elementos sociais, grupos e culturas.

No cotidiano das instituições de Educação Infantil, frequentemente o professor se depara com uma série de evidências sobre as questões raciais e o preconceito, tendo ou não clareza delas, muitas vezes utilizando práticas pertencentes ao senso comum que podem reforçar o racismo. Percebemos, nas creches, crianças negras querendo os seus cabelos lisos, ruivos, louros e negros escorridos, isto é, buscando a ideia do “belo” que lhes é transmitida através de um processo excludente e preconceituoso, deformando a imagem que a criança negra faz de si e reforçando a negação de sua condição racial.
Nos parâmetros curriculares nacionais esses atores não aparecem, a proposta pedagógica inicial não respeita e acolhe a diversidade étnico-racial; a cultura da criança e suas diversidades aparecem timidamente numa proposta pedagógica excludente; os saberes das disciplinas omitem a cultura local, étnica racial, social e de direito.

Em 2003, foi aprovada a Lei 10.639/03, tornando obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto oficiais quanto particulares, o ensino da História e da Cultura Afro-brasileiras, da História da África, o que, esperamos, possa apontar rotas, caminhos e possibilidades de romper com as desigualdades e a intolerância no Brasil. O sucesso da implementação da lei depende da continuação das lutas sociais e coletivas, sendo a sua mera aprovação um exemplo de vitória e conquista dos movimentos sociais.

O convite é para conflagrarmos um lugar de luta sutil e natural, um espaço de mobilização que componha uma pauta contra o racismo e o preconceito, introduzidos nas brincadeiras de roda, de pipa, de amarelinha, reinfantilizando os espaços de formação, de educar e cuidar, não se desprezando a pedagogia do lugar, como cita Ana Beatriz Goulart de Faria (2007), ressaltando a importância de se pensar sobre o

[...] sentido de restaurar a experiência infantil do urbano, o amor pelas esquinas, os esconderijos, os encontros fortuitos, os deslocamentos das funções, o jogo. [...] Imperdível e fundamental a grande estreia dos últimos tempos! (ANA BEATRIZ GOULART, 2007, p.103-104).

Que os meninos e as meninas das creches públicas, comunitárias, privadas, filantrópicas e confeccionais no Brasil não recebam titulações pela cor e pelo pertencimento racial é nosso sonho e esperança.

Yvone Costa de Souza é assistente social da Creche Fiocruz, Mestre em Educação, Cultura e Comunicação pela FEBF-Uerj, especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio, professora-substituta do Departamento de Educação e da Infância da Uerj.

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